quarta-feira, março 03, 2004

Tomás e o Poder


-Poder... - olhava fixo pro horizonte, os olhos um pouco fechados (mas nao de sono, ele forçava um pouco para que ficassem um pouco fechados).

=Poder fazer o que, Tomás?

-Poder de poder... - explicou, sem muita paciência - Ter poder.

=Ah.

-Controle! Domínio! - agora gesticulava.

=Uhum.

-Liderar, ditar as normas, ordenar os súditos! Sabe, Conrado, eu sinto um grande vazio dentro de mim, uma peça que falta pra me completar. Acho que tenho a vocação - agora já virado para o amigo.

=Faz cursinho.

-Não, Conrado! Vocação para Rei! Um Rei soberano de suas próprias terras! Senhor dos seus domínios! Dá pra parar com o palito do picolé e prestar atenção, Conrado?

=Uhum.

-Por que nao vai no mar limpar a mão? Tá toda melada de picolé de limão e areia - às vezes Tomás perdia o foco.

=Depois.

-Como eu faço pra virar Rei? Tem que ter sangue real desde que nasce?

=Difícil consertar isso agora, neh?

-Pois é. E agora?

Tomás pensa fazendo muito esforço, como se franzir a testa aumentasse o rendimento do cérebro, mas quem fala é Conrado.

=Mas o primeiro Rei não tinha sangue real.

Tomás não cabe dentro de si. Parece que os olhos vão saltar de empolgação.

-É isso! O primeiro rei não era filho de rei, assim como eu! Ele deve ter achado uma terra sem dono e ter montado seu reinado!

=Ó. Taí um jeito.

-Vamos procurar uma terra sem dono, Conrado! - Tomás apontava para longe com o indicador, braço esticado, espírito de aventura no olhar.

=Em Capão da Canoa?

-Não, Conrado. Vamos entrar no meu iate à jato e desbravar os mares a procura de uma ilha deserta... Claro que é em Capão da Canoa! - às vezes perdia a paciência com a burrice do amigo.

=Ah. E como vamos saber que achamos?

Tomás parou. Por essa ele não esperava. Como identificar uma terra sem dono?

-Sei lá. Quando tem dono ou tem placa ou tem cerca...

=Hmmm...

-Que foi?

Conrado não respondeu. Levantou-se com o palito de picolé na mão e com ele fez um círculo na areia caminhando em volta de Tomás.

=Ta aí.

-O que?

=A tua terra. Tá demarcada aí a tua terra. Não tinha placa nem cerca quando chegamos.

Tomás abriu a boca. Levantou sem mudar nada na expressão congelada em empolgação. Abriu os braços, encheu o peito e gritou bem alto:

-Este é meu reino! Salve o Rei Tomás!

Os que estavam presentes não entenderam: um siri, que parecia perdido, parecia continuar perdido. E o homem velho que acordou cedo pra correr na praia nao parecia interessado naqueles dois e continuou correndo cedo na praia.

Os dois ficaram ali um tempo. Tomás, com olhar maligno de Rei Malvado Soberano Absoluto, olhava em torno de si o seu reino, as terras onde sua lei valia, onde ele ditava o que era o bem ou o mal. Conrado pensava nas combinações possíveis do jogo da velha desenhando com o palito na areia.

-Cuida aí pra mim - disse Tomás ao levantar, passados uns minutos, indo para casa.

=Vai escrever a constituição? Contratar um exército? Procurar terras pra expandir os domínios? Definir a bandeira?

-Jogar video-game.

=Mas e o reino?

-Não quero mais.